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sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Che Guevara, Amílcar Cabral e a quimera africana


O livro intitula-se “Che Guevara: La clave africana, Memorias de un comandante cubano, mebajador en la Argelia postcolonial”, por Jorge Serguera (Papito), Grupo Editorial Líberman, Colección Memoria Histórica, 2008. São memórias de um comandante cubano que Fidel Castro nomeou embaixador na Argélia em 1963 e que disserta abundantemente sobre a presença de Che Guevara em solo africano e quais os seus sonhos revolucionários, centrados no Congo em chamas. 


Vem a propósito os seus encontros com Amílcar Cabral e o fornecimento de material cubano anterior à visita que Amílcar Cabral fará a Havana, em janeiro de 1966, e de que resultará um inequívoco apoio militar e logístico que se estenderá até ao fim da guerra. Jorge Serguera irá mover-se em Argel em contactos clandestinos com argentinos adeptos de Perón prontos a conspirar e venezuelanos ávidos de passarem à luta armada. Teremos verdadeiras águas-fortes de Ben Bella, Boumédiènne, Ben Barka, cujo assassinato em 1965, segundo o autor, terá prejudicado os propósitos da Conferência Tricontinental. Para o amante do histórico do Movimento dos Não-Alinhados e para os fervorosos do pensamento guevarista, há aqui muita surpresa, garanto.

Mal pisou solo argelino, no início de 1963, as autoridades pediram ao embaixador cubano para se encontrar com Sékou Touré. Nessas conversações, Touré reclamou um embaixador cubano em Conacri, o embaixador promete transmitir o pedido do presidente guineense. De viagem a Havana, encontra-se com Fidel e relata-lhe a conversa com Sékou Touré. Fidel pede-lhe para comunicar a Sékou Touré se ele estava disposto a que ajudassem o PAIGC, recebera pedido de Amílcar Cabral, a revolução cubana devia ser solidária com estes guerrilheiros. Nessa mesma noite encontra-se com Che Guevara que lhe pergunta o que pensaria Ben Bella se ele acolhesse Perón na Argélia, em seu entender essa viagem poderia melhorar a sua imagem na América Latina. Havia agora que consultar Perón. E o encontro realizou-se, não teve consequências.

Regressado a Argel, Jorge Serguera segue para Conacri, de imediato é no dia seguinte que recebi uma visita totalmente inesperada mas muito agradável de Amílcar Cabral. Suponho que esta visita foi promovida pelo presidente. Pela primeira vez tinha diante de mim um dirigente revolucionário, em luta aberta contra Portugal, o líder do PAIGC.

(C/ Fidel na visita a Havana em Janeiro 1966)
Era jovem, possuía uma cultura europeia e pelos seus modos e facilidade de exposição revelava uma formação humanista e incomum. Com uma linguagem coerente e sem propósitos evidentes de impressionar, abordava o tema com tal desenvolvimento e competência que me recordava uma aula na universidade. Falava como um livro. Quando toquei no tema do diferendo sino-soviético, logo meteu a sua interpretação das posições chinesas num ângulo favorável mas lamentando que tudo aquilo, além do dano que resultava para o movimento de libertação continental, iria conduzir fatalmente a um cisma. Através dele, confirmei a informação de que os chineses desenvolviam duas fábricas e outros projectos na Guiné e que a ausência soviética se fazia notar. Solicitou o nosso apoio e ajuda. Segundo ele, a luta na Guiné-Bissau estava bem estruturada e ele concluía que os portugueses não podiam resistir nem suportar aquela guerra durante muito tempo. Mantinha boas relações com Agostinho Neto e os dirigentes da FRELIMO. Avancei a minha opinião de que uma coordenação de acções militares simultâneas nos três países faria insuportável a situação para os portugueses, e conduziria ao colapso. Quando nos despedimos, anunciou a sua próxima visita e o nosso encontro em Argel. Assegurei-lhe que informaria Fidalgo sobre o seu pedido".

E depois derrama-se em considerações sobre a Guerra Fria, o problema do socialismo no mundo, descreve detalhadamente a Argélia, a libertação da nação argelina e a posição melindrosa do Partido Comunista Argelino, muito referenciado pelas suas estreitas ligações ao Partido Comunista Francês. Viaja na comitiva de Fidel Castro à URSS e depois Che Guevara chega a Argel. Depois da “crise dos mísseis” de outubro de 1962, Che estava absolutamente convicto que era indispensável abrir uma nova frente de luta contra o imperialismo, teria que ser numa região que perturbasse os interesses dos EUA, não se sabia ainda muito bem para onde pretendia ir Nasser, os dirigentes argelinos pareciam-lhe bem-intencionados e anti-imperialistas. Os não-alinhados estavam a entrar na cena, o Terceiro Mundo pretendia a equidistância face aos blocos, era uma neutralidade que atraia Nasser, Sukarno, Tito e Indhira Gandhi. O Che queria sondar vários dirigentes africanos, conhecer-lhes os propósitos. É um extensíssimo e curioso olhar sobre o guevarismo, nele é patente as reservas que o comandante nutria à ajuda soviética, que ele expressará no seu discurso em fevereiro de 1965 no Seminário Económico de Solidariedade Afro-Asiática, em Argel.

Em janeiro de 1964 surge um foco de unidade africana que se irá revelar como o único bem-sucedido: a união do Tanganica com o Zanzibar, a Tanzânia; os cubanos depositaram alguma esperança no nascimento deste Estado. É neste contexto que Jorge Serguera é também nomeado embaixador no Congo Brazzaville, tinha sido um pedido do presidente Massemba Debat. Che está radiante, já tem uma plataforma para interferir nos conflitos que incendeiam o Congo Kinshasa. Che viaja até Argel e fará seguidamente o périplo africano que tinha sonhado, que o autor descreve, a viagem ao Mali e depois à Guiné Conacri. Aqui Che encontrou-se com Senghor e reuniu amiudadas vezes com Sékou Touré e teve um encontro com Amílcar Cabral que o impressionou positivamente. Che argumentava que era importante e imprescindível que os dirigentes políticos do movimento revolucionário estivessem no território de luta (mais tarde di-lo-á a Agostinho Neto, que não terá apreciado a observação). Che parte para o Congo, infiltra-se na sublevação, irá regressar profundamente decepcionado. Há imensa literatura sob a presença do Che em África, terá sido Amílcar Cabral o único dirigente revolucionário que deveras o convenceu.

O autor volta à Guiné-Conacri, o navio El Uvero está a chegar com armamento para o PAIGC, traz Kalashnikov, morteiros 82, granadas obuses, espingardas RPK, metralhadoras BZA, RPG, uniformes, traz também instrutores para o PAIGC. O El Uvero partiria depois para outras águas, para descarregar armamento para o MPLA e para a FRELIMO. Nessa noite o embaixador Serguera janta com Sékou Touré e Amílcar Cabral, discute-se os apoios dos EUA a Portugal, o conflito sino-soviético, a OUA, Nasser, a posição Jugoslava. E o essencial do restante relato é dedicado à crise argelina, ao golpe em que o coronel Boumédiènne depôs Ben Bella, segundo o autor morria assim em definitivo o sonho africano do Che. Em 1966, Fidel apoiará entusiasticamente o PAIGC e só muito mais tarde se porá ao lado de Agostinho Neto e dos confrontos do MPLA com os seus opositores angolanos.
(obs. fotos são da presença de Che Guevara no Congo)

(texto de: Dr. Beja Santos)

(publicado em: http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt)


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